Por Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros
Senhor cidadão, eu quero saber com quantas mortes no peito se faz a seriedade, se a tesoura do cabelo também corta a crueldade. Assim cantava Tom Zé, na década de 70. Talvez outras causas o inspirassem, outros medos o assustassem, outras lutas se travassem, mas a pergunta permanece ecoando. Afinal, com quantos quilos de medo se faz uma tradição?
No dia 6 de outubro passado, foi julgada no STF (publicada a decisão no dia 17) a ADI n.º 4.983 que pleiteava a declaração de inconstitucionalidade da Lei n.º 15.299/13 do Estado do Ceará. A Lei cearense regulamentava a vaquejada como prática desportiva e cultural, violando o inciso VII do § 1º do artigo 225 da Constituição Federal. A decisão se deu no sentido de julgar procedente o pedido formulado na ação, declarando inconstitucional a Lei estadual.
Conforme a inicial, a vaquejada “é uma prática desportiva, atualmente muito popular no nordeste brasileiro, na qual dois vaqueiros montados em cavalos devem derrubar um touro (ou novilho), puxando-o pelo rabo dentro de uma área previamente demarcada”. A vaquejada consiste em espetáculo no qual são formadas “duplas de competidores que correm a galopes, cercando o boi em fuga. O objetivo é conduzir o animal até uma área marcada com cal e, estando ali, agarrá-lo pelo rabo, torcendo-o para, na queda, posicioná-lo com as quatro patas para cima”.
A vaquejada se configura como uma atividade de entretenimento, com finalidade econômica, cuja crueldade contra os animais que lhe é intrínseca não permite sua regulamentação. Tal atividade leva não apenas ao sofrimento, mas a morte de animais, em razão da violência da ação (problemas ortopédicos, fraturas, descolamento da cauda, dentre outros relatados nos próprios auto da ação).
Na vaquejada, a crueldade é ínsita, inerente à prática, pois envolve necessariamente o tracionamento da cauda do animal e sua consequente derrubada ao solo, enquanto corre em disparada. A cauda é extensão natural da coluna vertebral, região rica em vasos sanguíneos e terminações nervosas e, portanto, extremamente vulnerável a graves e permanentes lesões. Não há regulamentação possível que altere essa realidade.
Mesmo que revestida por práticas que outrora existiram no contexto cultural nordestino, na atualidade sua perpetuação se dá não por elementos culturais, mas sim pela manutenção de setores que fizeram dessa atividade uma atividade predominantemente econômica. Trata-se de uma atividade desportiva que toma por base o sofrimento desnecessário de um animal para manter uma atividade econômica que em tudo se choca com os ditames da Constituição Federal.
Martha Nussbaum destaca que o fato de os seres humanos agirem de forma a negar aos animais uma existência digna parece ser uma questão de Justiça, e uma questão urgente, ainda que tenhamos de argumentar mais para convencer aqueles que se recusam a aceitá-la. Talvez em busca dessa Justiça, a Constituição Federal, em seu art. 225, § 1º, inciso VII, veda toda a ação que submeta os animais à crueldade. Portanto, a vedação de crueldade é uma regra constitucional estrita, restritiva e proibitiva de condutas.
A previsão constitucional de vedação de crueldade contra os animais, expressamente traz consigo, uma tarefa estatal, em que o Estado deve coibir práticas que submetam os animais à crueldade. Essa regra não admite ponderação. Somente poderá ser considerada legítima e legal a manifestação cultural que não ofender a vedação de crueldade. Aos legisladores infraconstitucionais cabe a atuação no intervalo entre o princípio da proibição de excesso e o da proibição de insuficiência. A liberdade consiste em legislar entre esses dois extremos.
Uma insuficiente proteção de um direito fundamental, aquém do mínimo de proteção exigível, bem como uma excessiva proteção de um direito fundamental, além do máximo de proteção exigível, indicam omissão dos poderes públicos (ou atuação insuficiente) ou atuação excessiva dos mesmos, ambas violadoras dos direitos fundamentais.
Em recente manifestação, Ingo Sarlet defendeu: “a proibição de crueldade com os animais, a exemplo da proibição da tortura e do tratamento desumano ou degradante, assume a feição quanto à sua estrutura normativa, de regra estrita, que proíbe determinados comportamentos. Tal regra já corresponde a uma “ponderação” prévia levada a efeito pelo constituinte e, por isso, não pode ser submetida a balanceamento com outros princípios e direitos. Nessa toada, qualquer manifestação cultural religiosa ou não, somente será legítima na medida em que não implique em crueldade com os animais”.
Nesse sentido, a teoria dos limites dos direitos fundamentais vem em socorro de uma sociedade pluralista e solidária, justamente para solucionar os conflitos entre os direitos fundamentais. No caso em tela, trata-se de uma restrição constitucional imediata, ou seja, diretamente estabelecida pela norma constitucional. José Joaquim Gomes Canotilho defende que, “quando nos preceitos constitucionais se prevê expressamente a possibilidade de limitação dos direitos, liberdades e garantias através da lei, fala-se em direitos sujeitos a reserva de lei restritiva”.
No contrato social, em que se presume intrínseco um contrato contra a crueldade, as crenças e as tradições devem ser revistas continuamente. Uma tradição em si mesma não é argumento para justificar absolutamente nada (Wagensberg).
Não há tradição digna quando o espetáculo se reduz a uma demonstração de poder e força, de submissão do animal ao homem em uma exibição de covardia da espécie humana. Deve-se é refletir por que o homem se habitua a fechar os olhos sobre os sofrimentos que ele comete, acabando por convencer-se de que esse é um mal necessário, em nome da tradição a proteger, de uma economia a conservar, de um eleitorado a preservar (Cyrulnik).
Parabéns ao Supremo Tribunal Federal que mostrou respeito à Constituição brasileira e coerência com os precedentes da farra do boi e da rinha de galo.
Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros, Advogada Ambiental, é Pós-Doutora em Direito Ambiental (UFSC), Doutora em Direito (UFSC/Coimbra), Mestre em Direito (PUCRS), Professora Adjunta da Faculdade de Direito da PUCRS e Professora Permanente do PPGD da Unilasalle