Por Maria Cesarineide de Souza Lima e Fernanda Antunes Marques Junqueira*
“And we are here as on a darkling plain
Swept with confused alarms of struggle and flight,
Where ignorant armies clash by night”.
(Matthew Arnold, Dover Beach)
O processo de implementação de políticas públicas enfrenta, quase sempre, um tormentoso dilema: de um lado, a finitude dos recursos; de outro, a infinidade de demandas. O desenvolvimento e emprego de determinada ação perpassa pela escolha do agente público entre as diversas possibilidades e infinitas necessidades. Eleições nem sempre fáceis, a exigir determinados sacrifícios e trágicas escolhas, manifestados no processo de elaboração do orçamento.
Sob esse prisma, aparece o orçamento como locus adequado para a realização das escolhas políticas.[1] Por isso dizer que é “no âmbito do processo de elaboração do Orçamento — que deveria ser de atuação privilegiada do Poder Legislativo — que se realizam as primeiras escolhas trágicas, mesmo com recursos vinculados estabelecidos pelo “orçamento mínimo social”.[2] A realização de um direito social implica o sacrifício de outro dentro da dimensão limitada do orçamento, a exigir maior responsabilidade na administração dos recursos, naturalmente finitos.
À propósito, a expressão reserva do possível, tão aclamada pelos economistas, remete justamente a essa ideia, a qual reverberou na ciência jurídica a partir da decisão proferida pelo Tribunal Constitucional alemão no ano de 1972.[3] A ratio decidendi definiu que os direitos a prestações positivas estão sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de modo racional, pode esperar da sociedade.[4] A significar que “todo orçamento possui um limite que deve ser utilizado de acordo com exigências de harmonização econômica geral”.[5]
Daí a eloquente ponderação de Joaquim José Gomes Canotilho e Vital Moreira ao afirmarem que a realização dos direitos sociais, econômicos e culturais se condiciona à disponibilidade orçamentária, equacionada pelo indefectível limite da reserva do possível.[6] Se, portanto, a escassez se revela como um dado da realidade, negar seus efeitos é desvario quixotesco. Exige-se, de outra banda, maior responsabilidade na gestão desses recursos para melhor atender às necessidades sociais.
Entre as diversas políticas públicas, o acesso à justiça se destaca. Enquanto valor e direito, a acessibilidade plena ao sistema de justiça perpassa por uma política de racionalidade e melhor alocação dos recursos orçamentários para sua efetiva realização. E dentro de um cenário de enxugamento do orçamento, cabe à administração dos tribunais a tarefa de adequação e otimização dos recursos, sem que haja comprometimento da qualidade e efetividade da entrega do provimento jurisdicional. Aquilo, portanto, “que vale para a economia elementar vale também para a decisão política e social de alta complexidade”[7], a incluir, neste rol, o Poder Judiciário e sua capacidade de gerenciar, processar e julgar conflitos.
A pandemia, aliás, serviu como mola propulsora para esse tipo de reflexão, na medida em que agudizou a escassez dos recursos, simultâneo ao movimento de acréscimo de demandas. Sempre se idealizou a Justiça atrelada à sua estrutura física. Em outra ocasião, já afirmamos que a dimensão dos prédios fixava a medida da relevância do cargo.[8] A crise pandêmica, no entanto, revelou o equívoco e a puerilidade de referida associação, a ressignificar o próprio conceito de justiça, como serviço público praticado em todo e qualquer lugar pela introdução de ferramentas tecnológicas. As audiências, em formato telepresencial, e os atendimentos por via das plataformas Meet e/ou Zoom, garantiram a continuidade da atividade jurisdicional. Ganhou-se em ampliação e acesso[9], ao mesmo tempo em que se ganhou em economia e sustentabilidade. E os números falam por si. Não só houve um incremento da produtividade, como também se possibilitou uma economia, aos cofres públicos, no âmbito do Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região, na ordem de R$ 8 milhões.[10]
Em tempos de vacas magras[11], a lidar com um cenário de tamanha escassez, fome e miséria, mais trágicas são as escolhas. Escolhas políticas estão a acontecer na área da saúde, da educação, do saneamento básico, da distribuição equânime de renda. Exige-se, nessa medida, critério racional no emprego dos recursos públicos, a incluir, neste processo, o Poder Judiciário.[12]
Sob a ótica da sustentabilidade, a seu turno, a redução de liberação do agente poluidor monóxido de carbono na atmosfera ficou na ordem de 1,1 mil toneladas. Gastos com impressão de papel diminuíram exponencialmente (com redução de 95% no ano de 2021 e de 79% até abril de 2022) e o uso de copo plástico ficou na linha zero. Pela desnecessidade de deslocamento, despesas atinentes à utilização de hidrocarbonetos, como gasolina e diesel, tiveram redução, no ano de 2021, de 77% e, no ano de 2022, de 40%.[13] Esses dados revelam as vantagens do formato digital, a pautarem as iniciativas da Justiça do Trabalho de Rondônia e Acre para a realização da Agenda 2030 das Nações Unidas, dirigida à implementação de práticas sustentáveis pelo Poder Público. Eis o exemplo vivo da simbiose entre a dinâmica da economia e da ecologia na esfera do sistema de justiça brasileiro.
Eficiência, transparência, economicidade, sustentabilidade, ampliação do acesso e racionalização dos recursos são algumas das vicissitudes do formato digital da entrega da prestação jurisdicional, sobre as quais deve o Poder Público se fiar. Como axiomas a vincular o trabalho da administração pública, à luz do quanto alinhavado no artigo 37, caput da CR/88, não se autoriza, dessa feita, retroceder-se ao método tradicional de entrega da prestação jurisdicional, quando, comprovadamente, mais custosa, mais ineficiente e não sustentável. Mutatis mutandis, a ordem jurídica censura a atuação amadorística do agente público, a exigir o incansável esforço pela consecução do melhor resultado possível e o máximo proveito com o mínimo de recursos financeiros e humanos.
Se o principal desafio deste século — tanto para os cientistas sociais, como para os cientistas naturais — jaz na construção de comunidades ecologicamente sustentáveis, organizadas de tal modo que suas tecnologias e estruturas materiais não impliquem prejuízos à qualidade de vida de gerações presentes e futuras, o TRT-14 desponta, indene de dúvidas, como centelha ética do que se espera na conformação de uma sociedade mais justa, solidária e fraterna. Desperta-se como a Antígona dos tempos presentes, pois “a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas”[14], é espaço de todos, próxima, ainda que remota.
[1] CALABRESI, Guido; BOBBIT, Philip. Tragic Choices – The conflicts society confronts in the allocation of tragically scarce resources. Norton, New York, 1978.
[2] SCAFF, Fernando Facury. Reserva do possível pressupõe escolhas trágicas. Disponível aqui. Acesso em 06/06/2022.
[3] BVERFGE 33, 303, de 18/07/1972. Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Montevidéu: Fundação Konrad Adenauer, 2005, p. 656/667.
[4] KRELL, Andréas Joachim. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um Direito Constitucional. 1ª ed. Vol 1. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.
[5] SCAFF, Fernando Facury. Reserva do possível pressupõe escolhas trágicas. Disponível aqui. Acesso em 06/06/2022.
[6] CANOTILHO, Joaquim José Gomes e MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra, 1991. p. 131.
[7] SEN, Amartya. Identitá e Violenza. Roma: Laterza, 2006, p. 7/8.
[8] LIMA, Maria Cesarineide de Souza; JUNQUEIRA, Fernanda Antunes Marques. Justiça do Trabalho Presente: uma política de ampliação do acesso à justiça. Disponível aqui. Acesso em 06/06/2022.
[9] Para maior aprofundamento, ver: LIMA, Maria Cesarineide de Souza; JUNQUEIRA, Fernanda Antunes Marques. Justiça do Trabalho Presente: uma política de ampliação do acesso à justiça. Disponível aqui. Acesso em 06/06/2022.
[10] Disponível aqui. Acesso em 06/06/2022.
[11] Aqui se faz referência ao texto bíblico, especificamente em Gênesis 41.
[12] Disponível aqui. Acesso em 06/06/2022.
[13] Disponível aqui. Acesso em 06/06/2022.
[14] SÓFOCLES. Antígona.Trad. Ordep Serra e Sueli de Regino. São Paulo: Martin Claret, 2017, p. 30.
*Maria Cesarineide de Souza Lima é desembargadora presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região.
*Fernanda Antunes Marques Junqueira é doutora em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais e juíza do Trabalho pelo TRT da 14ª Região.
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 21/06/22
Edição: Ana Alves Alencar
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