Por Paulo de Bessa Antunes*
Um novo ponto foi acrescentado à controversa agenda socioambiental do presidente Jair Bolsonaro, trata-se da utilização econômica das terras indígenas brasileiras. Conforme recentes afirmações de Sua Excelência, o Executivo está preparando um projeto de lei que prevê a consulta dos povos indígenas, sem outorgar-lhes o direito de veto sobre o aproveitamento hidrelétrico e à exploração mineral em suas terras. Tais afirmações causaram indignação em muitos e admiração em outros tantos, fruto da polarização política que assola o Brasil e que muitos prejuízos causa ao País e, inclusive, aos próprios indígenas.
O bom senso recomenda que se examine a legislação aplicável. A Constituição Federal [CF] dispôs amplamente sobre os direitos indígenas e, em especial, sobre as terras indígenas. Conforme estabelecido pelo § 3º do artigo 231 da CF, o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. Assim, são três os requisitos para que os potenciais energéticos, assim como a pesquisa e a lavra de minerais possam ser realizados em terras indígenas: (1) autorização do Congresso Nacional, (2) consulta aos indígenas e (3) lei específica regulando a matéria.
O Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho [C169] , aprovada pelo Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho de 2002 e que entrou em vigor para o nosso País aos 25 de julho de 2003, tendo sido promulgada pelo Decreto nº 5.051, de 19de abril de 2004. A C 169 é considerada a maior Carta de direitos dos povos indígenas e tribais jamais escrita e conta com ampla aprovação dos indígenas que participaram ativamente de sua elaboração.
O artigo 6º da C 169 estabelece que os governos deverão consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente. Estabelece, ainda, que as consultas deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas.
Entretanto é necessário observar que os povos indígenas não são proprietários de suas terras tradicionalmente ocupadas que, na forma do artigo 20, XI da CF, são bens de propriedade da União, assim como os potenciais de energia hidráulica (art. 20, VIII) e os recursos minerais, inclusive do subsolo (art. 20, IX). Em tais circunstâncias, o artigo 15 (2) da Convenção 169 determina que caso a propriedade dos minérios ou dos recursos do subsolo pertença ao estado, ou mesmo de outros recursos existentes nos territórios indígenas “os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos com vistas a consultar os povos interessados, a fim de se determinar se os interesses desses povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. Os povos interessados deverão participar sempre que for possível dos benefícios que essas atividades produzam, e receber indenização equitativa por qualquer dano que possam sofrer como resultado dessas atividades.”
O consentimento dos povos indígenas, nos termos do artigo 16 (2) da C169, é exigível nas hipóteses excepcionais de translado dos povos indígenas das terras que ocupam quando “sejam considerados necessários, só poderão ser efetuados com o consentimento dos mesmos, concedido livremente e com pleno conhecimento de causa. Quando não for possível obter o seu consentimento, o translado e o reassentamento só poderão ser realizados após a conclusão de procedimentos adequados estabelecidos pela legislação nacional, inclusive enquetes públicas, quando for apropriado, nas quais os povos interessados tenham a possibilidade de estar efetivamente representados.”
Do texto convencional não se depreende a existência de um poder de veto concedido aos povos indígenas no que se refere à exploração de bens de propriedade do Estado que estejam localizados nas terras indígenas ou no seu subsolo. Ademais, o artigo 34 da Convenção 169 estabelece que “a natureza e o alcance das medidas que sejam adotadas para por em efeito a presente Convenção deverão ser determinadas com flexibilidade, levando em conta as condições próprias de cada país.”
Assim, parece claro que, se observadas as condições estabelecidas pela Constituição e pela C 169 não há obstáculo jurídico intransponível para as pretensões governamentais. A questão jurídica é clara. É na arena política, julgamento de conveniência e oportunidade, que a questão se complica.
*Paulo de Bessa Antunes – Mestre e Doutor em Direito. Líder de Pesquisa Acadêmica cadastrada no CNPq. Visiting Scholar de Lewis and Clark College, Portland, Oregon. Professor adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Procurador regional da República (aposentado). Foi Presidente da Comissão Permanente de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros. Ex-chefe da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro. Sócio da prática de Direito Ambiental do Tauil & Chequer Advogados, advogado e parecerista em Direito Ambiental. Autor de diversos livros e artigos sobre Direito Ambiental.
Fonte: Paulo de Bessa Antunes