por Pedro Mastrobuono
Vicente Racioppi dá nome a uma rua em Belo Horizonte. Estudou teologia, história, filosofia e letras clássicas, além de se formar em Direito. Na capital Mineira ensinou latim e sociologia em escolas secundárias. A trajetória pessoal deste advogado que também era educador, notabilizou-se por sua luta preservacionista, defendendo a arte, a arquitetura e a história da cidade colonial de Ouro Preto. Sua obra repercutiu no exterior, como demonstra o livro publicado pela Universidade de Maryland, titulado “Vicente Racioppi: O preservacionista local e o Estado Nacional”, de autoria de Daryle Williams.
Em 1972, Racioppi vendeu um Aleijadinho de sua propriedade, imagem sacra que hoje é centro de uma pendenga jurídica que vem gerando enorme celeuma.
Em qual contexto tal venda ocorreu? Para responder a este questionamento, deve-se destacar outra figura notória, a de Pietro Maria Bardi, cuja trajetória pessoal confunde-se com a história do Museu de Arte de São Paulo, o MASP. Pouco antes, Bardi publicara em sua revista Mirante das Artes, matéria intitulada “As imagens deixam as igrejas”, na qual analisava a mudança de mentalidade e atitude da própria Igreja Católica, que inicialmente era bastante apegada às obras de arte (como de Michelangelo e Rafael), mas que passara a estimular a substituição de obras antigas (especialmente de mármore ou madeira), por singelas novas representações de gesso. Bardi cita textualmente as então recentes declarações do Departamento de Artes Sacras da Arquidiocese, por seu porta-voz, o padre Darcy Corrazza, que entregara ao Cardeal Agnello Rossi um memorial de orientação para adaptação das igrejas, segundo as normas do Concilio Ecumênico Vaticano II. Tais novas diretrizes de desapego e substituição por novas imagens mereceram, à época, comparações com a mentalidade protestante.
Já se disse aqui que Vicente Racioppi notabilizou-se pelo protecionismo de Ouro Preto, uma das mais belas cidades coloniais. Não obstante, faltou dizer que a imagem por ele vendida em 1972 teria ornamentado no passado a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Ouro Preto. Como o próprio nome diz, esta Igreja pertencia a uma ordem terceira, entidade laica, que nunca fez parte do clero. E por quê? Porque a Ordem Regular dos Franciscanos é mendicante, jamais foi proprietária de absolutamente nada, desde São Francisco de Assis, face ao conhecido voto de absoluta pobreza.
Note-se que as irmandades, confrarias e ordens terceiras eram entidades privadas, com administração e contabilidade próprias. Assim, não é demasiado esclarecer que a lei do Primeiro Império datada de 1830, centro de toda a polêmica, era de fato bastante explicita, taxativa, atingindo, durante sua vigência, tão somente às ordens religiosas regulares. Nunca abrangeu ou alcançou às ordens terceiras e irmandades. Nunca.
Feitas tais considerações, cumpre agora matar a curiosidade dos leitores e revelar qual a obra de Aleijadinho vendida por Racioppi em 1972. Trata-se da imagem de São Boaventura recém apreendida pelo Ministério Público de Minas, que invocou a aludida lei imperial, alegando necessidade de licença prévia do Imperador Pedro I. Com isso, o MP tenta agora macular a tradição da referida obra, toda uma cadeia sucessória com mais de 180 anos.
Os documentos que ilustram este artigo, além de inéditos, são bastante raros. Pode-se ver a imagem de Aleijadinho, ainda na casa de Vicente Racioppi, antes de ser restaurada. Mais ainda, a carta firmada por Racioppi faz menção expressa ao fato de que não gostaria que tal peça deixasse o Brasil, razão pela qual a vendia para um conceituado arquiteto de São Paulo. Anos mais tarde, a obra foi vendida à coleção de João Marino, tendo sido restaurada e devidamente conservada. Já na coleção Marino, foi exposta em diversas mostras culturais.
Em todo este imbróglio, há um ponto pacífico, inconteste, reconhecido por todos: nunca houve qualquer furto, roubo ou situação congênere, no que diz respeito a esta imagem específica. Sempre houve conservação e fruição cultural. Convida-se, pois, à seguinte reflexão, sem paixões ou bairrismos: um proeminente mineiro vende formalmente uma obra de sua legítima propriedade, num contexto histórico onde a própria Igreja Católica estimulava a substituição de imagens sacras antigas por novas feitas de gesso. Tal peça, quando de sua confecção, nunca pertencera a qualquer ordem religiosa que, à época do Primeiro Império, estivesse subordinada à lei de 1830 que exigia licença prévia.
Há, pois, motivo plausível que agora justifique arbitrariedades ou aleivosias a quem quer que seja? Colecionadores, marchands, antiquários, críticos, curadores e todos aqueles ligados à chamada arte sacra, são atingidos pela simples divulgação de uma tese como esta. A memória de João Marino, benemérito que dedicou tantos anos ao Museu de Arte Sacra de São Paulo, certamente não merece nada disso.
Observação: a pendenga jurídica refere-se a uma ação promovida pelo Minstério Público que pretende expropriar o bem tombado por entender que a imagem teria sido levada “irregularmente” da igreja – para tanto alegando estar ainda em vigor uma lei dos tempos do império brasileiro…
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Pedro Mastrobuono é advogado, membro da Comissão de Infraestrutura, Logística e Desenvolvimento Sustentável da OAB/SP e diretor jurídico do Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna – pmastrobuono.blogspot.com.br/
Caro Sr. Pedro Mastrobuono,
Gostaria de obter informação, por gentileza, à qual acervo documental esse imagem da carta pertence? Seria no arquivo de Vicente Racioppi em Conselheiro Lafaiete?
Att.
Parabéns pela matéria!