Por Augusto Gomes*
Nasci e fui criado na capital mineira, cercada por montanhas, cachoeiras e parques exuberantes. Minhas melhores lembranças de infância remetem aos finais de tarde na Serra do Cipó, com a luz dourada colorindo as arvoretas tortuosas do Cerrado e aquelas curiosas rochas despontando do solo pedregoso, todas apontando para a mesma direção, como que saídas de um filme de ficção científica. Estas últimas sempre me chamaram a atenção, mas só pude entender seu real significado muitos anos depois. E eu não fui o único.
Ironicamente, estas paisagens compõem um dos mais antigos cenários geológicos e biológicos do planeta, mas permaneceram totalmente ignorados pela ciência e pela sociedade até muito recentemente. Eu me refiro aqui aos campos rupestres. Esta é uma história de resistência. É uma história da luta da vida contra a morte, contra o estado inanimado das rochas.
Os campos rupestres são um complexo mosaico de formações vegetais vivendo sobre solos rochosos extremamente pobres. Eles compõem a maior parte da vegetação sobre a Cordilheira do Espinhaço, a maior cadeia de montanhas do Brasil, com cerca de 1000 km de extensão, e a segunda maior da América Latina, perdendo apenas para os Andes. Entretanto, os campos rupestres também são encontrados de forma isolada em outras serras brasileiras e também no exterior, como em alguns países africanos e também na Austrália.
Além de guardarem singular beleza cênica, os campos rupestres são livros abertos sobre a história do nosso planeta: eles são alguns dos ambientes mais antigos e inóspitos de que temos conhecimento. Os organismos que ali vivem passam por variações dramáticas de temperatura, restrição hídrica severa, ventos fortes, radiação solar intensa e, o mais importante, solos praticamente inexistentes com níveis extremamente baixos de nutrientes e níveis altíssimos de metais pesados tóxicos. Para sobreviver a este ambiente tão hostil, a vida luta contra a morte diariamente, mas ao mesmo tempo, deve se tornar parte das rochas.
Você deve estar pensando que poucas criaturas são capazes de colonizar os campos rupestres, mas ao longo de 1,8 bilhão de anos de evolução, uma grande diversidade de formas de vida se desenvolveu sobre as rochas. Apesar de todas as adversidades, o campo rupestre é um dos ecossistemas mais diversos do planeta, mais diverso até que a Floresta Amazônica, quando consideramos a área ocupada. Cerca de 40% das espécies de plantas ali encontradas não existem em nenhum outro lugar do mundo, e elas apresentam várias adaptações fisiológicas, bioquímicas e morfológicas para sobreviver ao estresse ambiental.
As condições extremas dos campos rupestres levaram a uma estonteante diversidade de animais e plantas, mas também, forçaram os humanos a adaptarem seu estilo de vida às condições e recursos naturais disponíveis. Os registros mais antigos de grupos humanos na região datam de 12.000 anos atrás, e milhares de sítios arqueológicos já foram identificados ao longo da Cordilheira do Espinhaço, contendo desde pinturas rupestres até objetos manufaturados, armas e urnas funerárias. Não apenas as populações pré-históricas deixaram suas marcas na região – a paisagem rochosa continua a ser usada até o presente por comunidades tradicionais que preservam seu estilo de vida baseado na agricultura familiar, na caça, na pesca e na extração dos recursos oferecidos pelas plantas do Cerrado.
Infelizmente, os campos rupestres estão agora extremamente ameaçados por grandes projetos minerários, expansão urbana, plantio de monoculturas, queimadas ilegais, turismo desordenado e invasões biológicas por espécies exóticas. Estas pressões podem rapidamente destruir estes frágeis ecossistemas para sempre e acabar com um patrimônio ambiental e cultural unicamente rico.
Este artigo é uma tentativa de trazer a história dos campos rupestres ao conhecimento público e contribuir para a conservação destes ecossistemas extraordinários e amplamente ignorados.
Fotos: Augusto Gomes
*Augusto Gomes – Biólogo, mestre em Ecologia e fotógrafo da natureza. Desde 2010, desenvolve pesquisas voltadas para a ecologia e conservação de ecossistemas tropicais, com foco em morcegos e ambientes cavernícolas. Atualmente, busca na fotografia uma ferramenta para difusão do conhecimento científico e conservação da biodiversidade. É vencedor de vários prêmios nacionais e internacionais. Já teve suas fotos publicadas em oito livros. É colaborador do Conexão Planeta, do Bocaina Biologia da Conservação e do Instituto Últimos Refúgios. É membro da Associação dos Fotógrafos de Natureza do Brasil (AFNATURA) e mantém uma página na internet dedicada à divulgação científica e sensibilização ambiental: Andirá Imagens
Fonte: Conexão Planeta (publicado originalmente)