Quando se ia à casa das pessoas, para conversar e tomar café…
Por Marco Aurélio Arrais
Quando era criança, havia um costume muito difundido, chamado visita, que era ir à casa das outras pessoas para conversar e tomar café.
Hoje em dia ninguém mais faz isso. Quem vai à casa de todos os habitantes desse país, todas as noites, são as equipes de jornalistas e atores dos canais de televisão, numa intromissão desgraçada. Numa liberalidade sem fronteiras, brigam, namoram, chamegam, fuxicam, trambicam, fora as distorções cínicas das notícias que transmitem.
Os adultos gostavam muito, pois no dia escolhido para isso a arrumação começava lá pelo meio da tarde. Quase na boca da noite, davam um banho completo na meninada. Vestidos com roupa limpa e calçados nos pés, íamos com nossos pais à casa de amigos da família. Quando na casa visitada moravam outras crianças, o passeio valia a pena, pois as brincadeiras de correr, esconder, jogar maré, jogar queimada e rolar na grama dos jardins era uma beleza.
O problema era quando na casa só havia gente grande e velha. Tínhamos de ficar sentados na sala, sem nos mexermos , sem falar, só ouvindo uma conversa cansativa que nenhum de nós entendia.
Nessas visitas ficava-se sabendo dos últimos acontecimentos. Quem casou, quem pariu, quem morreu, quem viajou. Comentava-se sobre os filhos dos outros também: Que o filho da dona Rita estava perdido na vida. Fora visto tarde da noite, bebendo em um bar, na companhia de gente desconsiderada. Diziam que frequentava a casa da Maria Branca, na zona de Campinas, e também a casa do Edil, um viado que possuía um bordel na Rua P-16. Havia sido visto passeando de braço dado com puta estabelecida e comprovada. Por causa disso, seu namoro com a filha do doutor Aniceto estava com os dias contados. Pai algum admitiria comprometimento de filha prendada e portadora de donzelice confirmada, com cabra safado.
Outro relatava que a filha da dona Nair tinha viajado para São Paulo, e lá tinha ido numa tal de boate. Que era um lugar de perdição. Um cômodo apertado, sem janela, com muita pouca luz, onde as mulheres bebiam e fumavam na maior senvergonhice. Tinha até beijo na boca, na frente dos outros. Outro jurava que quando foi, viu moça de família deixar o namorado pegar nas coxas dela, por baixo da mesa.
E o filho do seu Janjão, homem respeitado e sério? O rapaz deu de adotar um comportamento mais sem preceito. Passou a andar de sapato branco e sem meia. O sapato era daqueles que não tinha cordão de amarrar, chamado mocassim, e ainda usava umas camisas de duas cores e sem gola, o que não era coisa de macho.
Certa feita um vizinho de minha casa, rapaz tido como ajuizado, passou a usar a manga da camisa com duas dobras, ficando quase na altura do sovaco. A gola da camisa, virada para cima provava as suspeitas: era mais um transviado. Hoje em dia, se chamar alguém de transviado, pode dar briga feia. Tenho certeza que entenderiam somente a segunda metade da palavra.
A condenação era maior quando falavam sobre um tal de desquite. Não havia coisa mais condenada. O homem, quando desquitava virava um sem-vergonha, pois não era casado nem solteiro. A mulher perdia as amizades, pois nenhuma outra queria ter por perto uma outra que, por não ter mais freios, poderia seduzir seu marido.
Uma vez perguntei o que era o tal de desquite, e levei uns bons safanões, para não me intrometer em assunto de adulto. Ainda mais uma coisa como aquela, condenada pela religião. Calculei que devia ser um pecado do mais graúdo. Só não entendia por que os homens, quando falavam sobre as mulheres desquitadas, diziam que o ex-marido dela era uma besta. Como é que largara de uma mulher tão boa. Outras eram chamadas boazudas. Eu achava que devia ser aumentativo. Só não conseguia entender porque as casadas queriam distância delas. Se eram tão boas assim, porque os seus maridos não podiam conversar com elas?
Doença era outro assunto muito comentado. Havia uma doença terrível, chamada de tumor. Quando alguém tinha o tal de tumor, não tinha salvação. Nem Deus dava conta. Era morte certa. A pessoa ia emagrecendo, amarelando, perdendo as forças. Remédio não existia. Comentavam que lá no estrangeiro, estavam começando a tratar a tal doença com uns raios iguais aos que saíram da tal bomba atômica, que haviam jogado no Japão. Mas como é que iam curar uma doença braba daquela com uma coisa que queimava, matava tudo e até desmantelava prédio? Só podia ser mentira, ou coisa de quem tinha parte com o cão. Não devia ser coisa inspirada por Deus.
Esses assuntos proibidos, a meninada ouvia escondida atrás das portas e debaixo das janelas.
Bom mesmo era na hora de servir para nós, crianças, refresco com bolo, pão de queijo, rosquinha, quebrador e pêta. Não podíamos comer muito, que era falta de educação. Nunca entendi porque em casa a quantidade que se comia não era limitada, e na casa dos outros, sim. Mas o melhor mesmo era quando a casa visitada tinha geladeira, e serviam guaraná gelado. Refrigerante era uma coisa rara, que só tomávamos em dia de festa, e mesmo assim, só uma garrafinha. Não havia esse excesso de hoje. E só existia guaraná. Uma vez me contaram sobre a existência de uma tal de Coca-Cola e um tal de Crush. Ficava imaginando qual seria o gosto dessas bebidas, com nomes tão diferentes.
Quando havia festa de aniversário, a vigilância em cima da molecada era menor. Então podíamos comer doce à vontade. Fora os que colocávamos nos bolsos, para desespero das nossas mães, que tinham de lavar, com urgência, aquelas calças todas lambuzadas de chocolate, doce de leite e açúcar.
Hoje, os (des)valores da criançada são outros. Há uma oferta excessiva de tudo, sem valorização de coisa alguma. A meninada torce o nariz para tudo, sem achar graça em quase nada. A coisa mais difícil que acho é dar presente para criança, pois elas tem centenas de brinquedos, e quase nunca acertamos na escolha que fazemos, pois a cambada não tem dó em fazer cara de bosta para um brinquedo que já tenham ou que não é do seu agrado.
(Goiânia, 08/08/15 – Marco Arrais)
Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”.
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Parabéns Marco pela pesquisa e riqueza de detalhes desses tempos que nao voltam mais.