por Pedro Mastrobuono
Desesperar jamais
Aprendemos muito nesses anos
Afinal de contas não tem cabimento
Entregar o jogo no primeiro tempo
Nada de correr da raia
Nada de morrer na praia
Nada! Nada! Nada de esquecer…
[Desesperar Jamais, Ivan Lins]
Volto ao Portal Ambiente Legal – Legislação, Meio Ambiente e Sustentabilidade, para trazer o desenlace de assunto sobre o qual publiquei em dois artigos anteriores, titulados respectivamente “Lei imperial para apreender obra sacra” e “Vicente Racioppi e seu Aleijadinho”, através dos quais levava ao conhecimento que o Ministério Público de Minas recorrera à lei de Dom Pedro Primeiro para apreender obras sacras legitimamente comercializadas desde os tempos coloniais.
Isso mesmo, com fulcro em lei do Regime Imperial Brasileiro, datada de 09 de Dezembro de 1830, buscava o MP mineiro criar uma espécie de “pecado original”, um vício de origem que macularia toda a tradição (venda, troca ou doação) de incontáveis peças de arte sacra, atingindo suas cadeias sucessórias da era colonial até os dias atuais.
Hoje, apenas um ano e cinco meses após sua distribuição (Distribuição: 28/11/2014 às 18:29Hs – Livre), volto ao Ambiente Legal lisonjeado e orgulhoso com a vitória obtida na primeira ação de usucapião de obras de Aleijadinho, comemorando o êxito desta medida capaz de sanear e corrigir uma série de distorções e arbitrariedades cometidas.
Já trazia o orgulho de ter sido pioneiro na tese da Usucapião para obras de arte, em especial para um Busto Relicário de terracota, do Frei Agostinho de Jesus, que acabou por se converter em Jurisprudência, utilizada como referência. Era, pois, a primeira do gênero em Arte Sacra paulista.
Ainda mais orgulhoso por termos proposto e vencido a primeira ação envolvendo Aleijadinho. Agora novamente, a primeira do gênero, em Arte Sacra mineira.
É, vencemos! A ação já transitou em julgado. Abaixo os dados e trechos da decisão definitiva.
“Assunto: Propriedade por Usucapião
Vistos. Maria Júlia Barreto da Silveira Arena ajuizou ação de usucapião de bens móveis, sustentando em síntese que na década de 70 adquiriu um par de tocheiros barrocos em madeira (cedro) entalhada sem pintura; (b) uma estátua em madeira (cedro) entalhada sem pintura, representando S. Domingos de Gusmão, faltando as asas e parte dos dedos da mão direita; (c) um trono, ou caldeirão de madeira (cedro) com braços torneados, com assento em couro tacheado e pirogravado, espaldar recortado em formato de rim encimado por pequenas volutas, pés retos amarrados por aranha em xis; (d) uma estátua em madeira (cedro) entalhada com resquícios de pintura, representando S. Francisco de Paula, apresentando rachadura longitudinal na parte superior do tórax e na base e faltando dois dedos da mão direita; que se encontra na posse mansa e pacífica por mais de 40 anos; que exerce a posse com animus domini, emprestando-a para amostras culturais e exposições.
[…]
Tem-se a usucapião extraordinária de bem móvel. O único requisito ao qual a autora deve cumprir para que seja declarada a ação de usucapião procedente é o de ter a posse contínua e pacífica do mobiliário (tocheiros, trono e estátuas) por cinco anos ininterruptos, nos termos do artigo 1.261, do Código Civil, o que foi devidamente comprovado pela anexação de panfletos de exposições em que as obras de arte foram exibidas (fls. 22/32), com indicação da autora como sua proprietária e colaboradora nas mostras (fls. 24 e 32). Só haveria tal reconhecimento dos historiadores e curadores se não estivesse na posse contínua e pacífica das obras há mais de quarenta anos.”
Em dezembro de 2014, quando da distribuição da ação, o cenário da época era outro, com a apreensão de bens culturais valiosíssimos que nunca haviam sido furtados ou roubados. Contexto onde a memória de cidadãos ilustres como João Marino, cuja trajetória se confunde com a própria história do Museu de Arte Sacra de São Paulo, estava sendo manchada, sem nenhum critério ou cuidado. Distorções eram feitas para tentar justificar apreensões de bens regularmente comercializados e com licita tradição em mãos privadas por quase 200 (duzentos) anos.
A primeira distorção era uma leitura equivocada do chamado “Regime do Padroado” e da legislação, da época, denominada “Lei da Mão Morta”. No Brasil anterior à proclamação da República, havia uma simbiose entre a Santa Sé (Vaticano) e as Coroas Ibéricas (Portugal e Espanha), que funcionava tal qual as modernas e atuais “franquias”. Através do referido “Regime do Padroado”, o Rei de Portugal livremente nomeava padres e bispos aqui no Brasil, recolhia e administrava o dízimo, etc. Tais atitudes eram, mais tarde, meramente homologadas pela Santa Sé.
Ocorre que, a Igreja Católica era, naquela época, latifundiária na América do Sul. Recebia, por praxe, diversas glebas de terra das chamadas “Heranças Pias”, posto que incontáveis famílias deixavam seus bens para a Igreja.
Pois bem, queira-se ou não, havia o risco verdadeiro da Igreja, proprietária de terras, tanto no território da Coroa Portuguesa quanto da Espanhola, dispor unilateralmente de seus bens imóveis, causando um grave e real problema de soberania territorial. Assim, por tais razões, a legislação da época, denominada “Mão Morta”, proibia a Igreja Católica de vender seus bens sem a licença prévia da Coroa Portuguesa. Note-se, por favor, que esta era uma legislação voltada à questão territorial, onde os bens protegidos eram imóveis (terras).
Ora, tentar aplicar tal legislação para bens móveis (imaginária sacra), mesmo que naquela época, já seria um primeiro equívoco.
Uma segunda e grave distorção é que legislação de Dom Pedro Primeiro, invocada para apreender obras, ainda que naquela época, aplicava-se tão somente ao Clero Regular.
Ocorre que, as chamadas “Ordens Medicantes”, como a dos Franciscanos, desde sempre fazem voto de pobreza e não podem ser proprietárias de nada. Razão pela qual, para contornar esta questão, desde aquela época, constituíram-se as chamadas “Ordens Terceiras” ou “Irmandades”, compostas sempre apenas por fiéis, entidades laicas e totalmente desvinculadas do Clero, seja do ponto de vista da administração e quanto do patrimônio, funcionando tal qual as nossas ONG’s atuais.
Por tais razões, a denominada Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Ouro Preto nunca de fato pertenceu ao Clero Regular, nem o prédio, nem os bens de seu interior. Sempre foi propriedade privada. Sempre.
Assim, a já referida apreensão do Busto de São Boa Ventura, que nunca fora roubado ou furtado, apenas por ter ornamentado tal Igreja no passado, e que pertencente há muitas décadas à família de João Marino, sob a alegação de que faltava a anuência do Imperador Pedro Primeiro é, além de insustentável do ponto de vista jurídico, uma tese que claramente distorce fatos e circunstâncias, não se reconciliando, pois, com a história do Brasil, seja do período imperial, muito menos do período republicano.
Assim como salta aos olhos, a utilização difundida de verbos como “repatriar”, que na realidade conceito muito mais abrangente que os limites territoriais dos Estados membros. Por favor, “Pátria” é o nosso Brasil e Minas Gerais não é um limite territorial autônomo da nossa República Federativa.
Essa ideia, ainda que sedutora, de “repatriar” obras de Aleijadinho para Minas Gerais, sob a alegação de falta de autorização de Dom Pedro Primeiro é, especialmente do ponto jurídico, tão extravagante quanto justificar a apreensão a Monnalisa, trazendo-a de volta à Toscana, sob o argumento que faltou autorização de Lorenzo de Medici.
Se a ideia é poder desfrutar das obras no exato local onde foram concebidas na origem, que então se buque caminhos lícitos e legítimos, como projetos patrocinados, políticas públicas de aquisição de acervo, entre outras medidas.
leia também:
https://www.ambientelegal.com.br/lei-imperial-para-apreender-obra-sacra/
https://www.ambientelegal.com.br/vicente-racioppi-e-seu-aleijadinho/
Pedro Mastrobuono é advogado especializado em Direitos Autorais, membro efetivo das Comissões da OAB/SP: COINFRA e DIREITO ÀS ARTES, sócio Fundador e Diretor do Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna – IAVAM, ex-Presidente do Instituto de Arte Contemporânea – IAC
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É com grande pesar , que leio uma noticia desta que afronta o povo de Minas Gerais . Essas peças sacras , pertencem de fato ao povo mineiro , nosso patrimônio histórico vem sendo dilapidado há varios anos , essa familia paulista deveria se envergonhar de suas atitudes indevidas e devolver o acervo a quem verdadeiramente é dono . O povo mineiro e Brasileiro .