Por Talden Farias e Pedro Ataíde*
Em artigo publicado anteriormente nesta coluna, verificou-se que os problemas jurídicos relativos à Zona de Amortecimento costumam ser mais graves do que os que envolvem apenas o interior das Unidades de Conservação, em virtude da insuficiência de regulamentação e da delimitação territorial imprecisa, como bem destacou Paulo de Bessa Antunes1. Realmente, existe um grau de segurança jurídica em relação a estas que inexiste em relação àquelas, instituto que ainda não recebeu a atenção devida por parte da doutrina. Entretanto, é certo que nessa seara nenhuma discussão é tão polêmica quanto a existência de Zonas de Amortecimento em áreas urbanas consolidadas.
Quando a Zona de Amortecimento é instituída em localidades com baixa ou nenhuma presença humana, a regulamentação no Plano de Manejo e do seu entorno não conterá maiores controvérsias. O problema é que há casos em que a Unidade de Conservação é criada quando já existe situação de ocupação humana consolidada na área circundante, com residências, estabelecimentos comerciais e equipamentos urbanos devidamente fixados2. Em tais situações não se pode simplesmente “desestimular” a ocupação humana porque ela já é um fato, e, obviamente, não se pode induzir a que não ocorra algo que já aconteceu.
José Eduardo Ramos Rodrigues3 pondera que “a aplicação de tal dispositivo no entorno de Unidades de Conservação situadas dentro ou muito próximas de áreas urbanas, onde a população já se encontra bastante adensada, deverá ser muito dificultosa”. Essa situação é ainda mais complicada quando a ocupação humana existente ocorreu de forma lícita e sob a tutela do Poder Público, que concedeu alvarás e licenças para as residências e estabelecimentos comerciais existentes no entorno da área protegida.
É notório que a Lei n. 9.985/2000 (Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC) possui inúmeras incongruências e falhas de técnica legislativa. Nas palavras de Antônio Herman Benjamin4, “a lei, sem prejuízos de avanços inequívocos que introduz, não é nem harmoniosa, nem muito menos moderna ou técnica”.
Nesse diapasão, impende destacar que a lei em tela, ignorando as peculiaridades que o caso concreto pode apresentar, estabelece que toda Zona de Amortecimento de Unidade de Conservação de proteção integral deve ser considerada perímetro rural:
Art. 49. A área de uma unidade de conservação do grupo de Proteção Integral é considerada zona rural, para os efeitos legais.
Parágrafo único. A zona de amortecimento das unidades de conservação de que trata este artigo, uma vez definida formalmente, não pode ser transformada em zona urbana.
Depreende-se desse dispositivo o seguinte: ou a Lei n. 9.985/2000 prevê apenas a existência dessa modalidade de Unidades de Conservação em perímetro rural, ou existem falhas de técnica legislativa nesse diploma. Contudo, ao determinar que cabe ao Poder Publico definir espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, em momento algum o inciso III do § 1º do art. 225 da Constituição Federal limitou essa incumbência ao perímetro rural.
O dispositivo constitucional que estabelece a obrigação de criar áreas especialmente protegidas deve ser interpretado da forma mais ampla possível, porque diz respeito a direito fundamental. Compreender que a Lei n. 9.985/2000 determina que somente em perímetros rurais é possível criar Unidades de Conservação, bem como estabelecer sua Zona de Amortecimento, é interpretar a Constituição Federal de acordo com a legislação ordinária e, consequentemente, inverter o ordenamento jurídico nacional.
De fato, o que justifica a criação de uma Unidade de Conservação é a relevância natural da área a ser protegida, como explica Antônio Herman Benjamin, independentemente de localização:
O que se visa com a instituição de uma unidade de conservação é a algo bem mais grandioso e complexo, pois, além de resguardar paisagens de notável beleza cênica, almeja-se manter e restaurar a biodiversidade, proteger espécies ameaçadas de extinção, assim como as características relevantes de natureza geológica, geomorfológica, espeleológica, arqueológica, paleontológica e cultural e os recursos hídricos e edáficos.5
Ou seja, o fato de a área a ser especialmente protegida se localizar em perímetro rural ou urbano (ou urbanizável ou de expansão urbana) é secundário, o que importa é a relevância natural. Em certo aspecto, é até mais importante criar áreas especialmente protegidas no perímetro urbano, porque a maior parte da população brasileira e mundial é urbana e nessas áreas a qualidade de vida costuma ser menor do que no campo. O acesso à natureza e à qualidade ambiental têm uma relação direta com a saúde física e mental, tanto que o inciso VIII do art. 200 da Carta Magna de 1988 dispõe que o SUS deverá atuar na proteção do meio ambiente.
Logo, espaços territoriais especialmente protegidos podem e devem ser criados em perímetro urbano, visto que, por ser benéfico ao meio ambiente e a qualidade de vida da coletividade, tal desiderato está em perfeita consonância com o mandamento constitucional.
Quando for criada em perímetro urbano Unidade de Conservação que preveja o estabelecimento de Zona de Amortecimento, isso deve ser feito levando em consideração a situação existente no entorno da área a ser protegida. Não se pode fazer de conta que determinada área urbana é rural apenas para atender a formalidade prevista em lei, até porque a legislação não pode ignorar a realidade.
Para estabelecer a Zona de Amortecimento é imprescindível atentar para a realidade econômica e social do entorno da Unidade de Conservação, pois, como já ressaltado, aquela deve observar a categoria, os objetivos e o bioma dessa última. Nesse cenário, nunca deixa de ser pertinente relembrar as palavras do jurista francês Georges Ripert, segundo o qual “Quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito”.
Em outras palavras, a Zona de Amortecimento deve levar em consideração as atividades existentes no entorno da Unidade de Conservação, de maneira a integrar aqueles que habitam ou trabalham no seu entorno. Esta deve ser compreendida como benefício concreto para a coletividade em termos de aumento da qualidade de vida, já que sua criação resulta necessariamente em melhores opções da laser, qualidade do ar, ventilação, bem como na redução da poluição sonora.
Ao determinar no caput do art. 225 da Constituição Federal que a defesa do meio ambiente é obrigação do Poder Público e da sociedade, o legislador constituinte originário reconheceu que tão relevante tarefa não pode ser cumprida sem o empenho efetivo da população. Isso implica dizer que se a comunidade do entorno e suas atividades não forem levadas em consideração nesse processo, dificilmente a Unidade de Conservação poderá cumprir o seu objetivo maior.
Nesse sentido, Paulo Affonso Leme Machado6 entende o seguinte:
A zona de amortecimento e a unidade de conservação devem ter atividades que coexistam harmonicamente, pois o meio ambiente não se administra contra os vizinhos ou em dissonância com seus anseios e suas necessidades. Seguiu a legislação brasileira a orientação da União de Conservação da Natureza, promovendo a interdependência dos espaços protegidos, da economia e da vida da população local.
Américo Luís da Silva Martins7 alerta que a maior parte dos problemas das Unidades de Conservação surge de conflitos, tendo em vista a “restrição ou limitação do uso dos recursos e devido à falta de entendimento destas populações sobre a importância das áreas protegidas e os benefícios que elas originam”. Segundo o autor, para a criação e manutenção de tais áreas é preciso o entendimento e apoio das populações locais, a promoção do desenvolvimento socioeconômico das comunidades do entorno e o estabelecimento de processos participativos entre a unidade de conservação, seus vizinhos e a sociedade em geral.
Além disso, as Zonas de Amortecimento devem compatibilizar conservação e desenvolvimento, “pois embora a meta principal seja a proteção da biodiversidade, deve-se harmonizá-la com a criação de benefícios para a comunidade local”8. Vale a pena ressaltar que aliar a proteção ao meio ambiente ao desenvolvimento sócio-econômico é o objetivo maior da Política Nacional do Meio Ambiente, conforte determina o caput do art. 2o da Lei n. 6.938/1981.
Na verdade, essa necessidade de integração da população e das atividades do entorno à Unidade de Conservação está prevista no art. 27, § 1º, da Lei n. 9.985/2000, quando diz que o plano de manejo deve abranger a Zona de Amortecimento com o fito de promover a integração à vida social e econômica da população local.
A Zona de Amortecimento não pode restringir as atividades econômicas do entorno existentes anteriormente à criação da própria Unidade de Conservação, como adverte Paulo Affonso Leme Machado:
Os usos agrícolas ou pecuários já anteriormente existentes na área de entorno da unidade de conservação, que se tornará zona de amortecimento, não podem ser impedidos, sob pena de a medida constituir uma desapropriação indireta. As novas normas de gestão dessa área, que integrarão o plano de manejo, devem buscar a integração à vida econômica e social das comunidades vizinhas” (art. 27, § 1º, da Lei nº 9.985/2000).9
No mesmo sentido, acrescenta Antonio Pereira de Ávila Vio10:
A interpretação da definição das zonas de amortecimento deverá ser fundamentalmente dinâmica, considerando que o objetivo não é restringir ou congelar o desenvolvimento econômico da região, mas ordenar, orientar e promover todas as atividades compatíveis com o propósito e objetivos da zona de amortecimento, criando condições para que os Municípios envolvidos interajam com a unidade de conservação e criem uma base sólida para o seu próprio desenvolvimento social e econômico, respeitando e utilizando as características e potencialidade da região, como membro co-participante da unidade de conservação.
Deve-se destacar que a compatibilização das atividades humanas e da conservação, na Zona de Amortecimento, é mais viável do que a desapropriação de áreas urbanas. É que, nesses casos, seria provável que o Poder Público, no lugar de desapropriar áreas, promovesse a desafetação de espaços insertos na própria unidade para servir de Zona de Amortecimento. As medidas de desapropriação só devem ocorrer em último caso, quando não for possível a harmonização.
Não se pode ignorar que a Zona de Amortecimento não possui existência per si, na medida em que é concebida como parte acessória da respectiva Unidade. Logo, se o grau de proteção daquela for igual ou quase igual ao desta, é possível que a Administração Pública esteja apenas querendo instituir uma Unidade de fato sem ter que desembolsar nada, o que seria um desvio de finalidade. De mais a mais, não se pode esquecer que o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a segurança jurídica também são valores maiores do ordenamento jurídico, consoante estabelece o inciso XXXVI do art. 5o da Lei Fundamental.
Com efeito, a disciplina legal é inadequada quando determina que as Unidades de proteção integral e as respectivas Zonas de Amortecimento são consideradas área rural. Conforme já asseverado, é até mais indicado a instituição de unidades em espaços urbanos, visto que está diretamente relacionado à qualidade de vida de considerável contingente populacional.
Sendo assim, as Zonas de Amortecimento de Unidades de Conservação, quando envolverem zona urbana (ou urbanizável ou de expansão urbana), devem buscar a máxima harmonização com as atividades humanas. Isso implica dizer que as limitações devem levar em consideração também as características peculiares ao cotidiano das cidades. Caso as restrições cheguem a inviabilizar a ocupação humana, haverá a obrigação de desapropriar a área do entorno. Inclusive, tal situação poderia funcionar como subterfúgio para que os governantes suprimissem áreas do interior da unidade para servir de zona de amortecimento, o que seria um total contrasenso.
* Este texto é dedicado à memória do jurista José Eduardo Ramos Rodrigues, amigo querido e precursor do estudo do direito das áreas protegidas e do patrimônio cultural.
1 ANTUNES, Paulo de Bessa. Áreas protegidas e propriedade constitucional. São Paulo: Atlas, 2011, p. 7.
2 A Lei n. 9.636/1998 classifica como área urbana consolidada aquela “I – incluída no perímetro urbano ou em zona urbana pelo plano diretor ou por lei municipal específica; II – com sistema viário implantado e vias de circulação pavimentadas; III – organizada em quadras e lotes predominantemente edificados; IV – de uso predominantemente urbano, caracterizado pela existência de edificações residenciais, comerciais, industriais, institucionais, mistas ou voltadas à prestação de serviços; e V – com a presença de, no mínimo, três dos seguintes equipamentos de infraestrutura urbana implantados: a) drenagem de águas pluviais; b) esgotamento sanitário; c) abastecimento de água potável; d) distribuição de energia elétrica; e e) limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos sólidos”.
3 RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Sistema nacional de UCs. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 106-107.
4 BENJAMIN, Antônio Herman. Introdução à Lei do Sistema Nacional de UCs. In BENJAMIN, A. H. Direito ambiental das áreas protegidas: o regime jurídico das UCs. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 287.
5 Ibidem, p. 292.
6 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Áreas protegidas: a Lei n 9.985/2000. In: BENJAMIN, Antônio Herman (org.). Direito ambiental das áreas protegidas: o regime jurídico das unidades de conservação. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 248-275, 2001, p. 259.
7 SILVA, Américo Luís da Silva. Direito do meio ambiente e dos recursos naturais. Vol. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 179.
8 FERREIRA, Gabriel Luis Bonora; PASCUCHI, Priscila Mari. A zona de amortecimento e a proteção à biodiversidade nas UCs. In BENJAMIN, A. H. (Org.). Direitos Humanos e Meio Ambiente. Vol. 1. São Paulo: Instituto por um Planeta Verde, 2006, p. 529.
9 MACHADO, Paulo Affonso Leme. op. cit., p. 259.
10 VIO, Antônio Pereira de Ávila. Zona de amortecimento e corredores ecológicos. In: BENJAMIN, Antônio Herman (org). Direito ambiental das áreas protegidas: o regime jurídico das unidades de conservação. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 348-360, 2001, p. 348.
*Talden Farias é advogado, professor da UFPB e da UFPE, doutor e pós-doutorando em Direito da Cidade pela UERJ, doutor em Recursos Naturais pela UFCG, mestre em Ciências Jurídicas pela UERJ e autor de publicações na área de Direito Ambiental e Urbanístico.
Pedro Ataíde é servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB e autor do livro “Direito minerário” (3. ed. JusPodivm, 2020).